O meu, o seu, o nosso Pacaembu agora é deles

27 jul, 2022 | Cultura

Eu me chamo Victor Amatucci. E esta talvez seja a única parte de mim que não tenha sido influenciada pelo Pacaembu. O resto, todo o resto do que eu sou como homem, como pai, como filho e como cidadão, tudo de alguma forma é resultado direto ou indireto das coisas que vivi ali.

Eu sei, as pessoas entendem como hipérbole, exagero, floreio de um emocionado, um amor platônico que não resiste à realidade. A concretude da evolução, das modernidades, das coisas todas que vão e que passam. Só me resta, então, resmungar um pouco do que foi, para mim, aquele lugar.

Foi ali que terminei de ler “Noite na Taverna”, do Álvaro de Azevedo. Pois é, ali, na arquibancada amarela, atrás do gol, enquanto esperava o show do Rush, nos idos de 2002 se é que me minha memória não falha. Antes de entrar, na revista, centenas de pessoas esperando atrás de mim, na fila, e eu contente, contando a história do livro para o policial militar entender a importância de não jogar ele fora só porque, imagina, é um livro inflamável (mais do que supôs o PM, imagino eu).

Foi ali que assisti pela primeira e única vez o Deep Purple, logo após uma apresentação magistral do Sepultura, em 2003. Foi ali que fui ao estádio sozinho, ver meu Corinthians pela primeira vez. E foi ali, no meio da organizada, que levei meu primo para assistir um jogo de futebol pela primeira vez. Um Corinthians e Fluminense com 3 gols do Fenômeno, e aí já pulei muito tempo.

Porque as lembranças, como aquilo que somos, não se dá em linhas retas. São tortas, são equivocadas, são cheias de enxertos, como é a própria vida, construída, como se sabe, a partir das emoções que vivemos.

Foi ali que chorei pela primeira vez. E foi ali que chorei pela primeira vez de alegria também. O primeiro banheiro químico que fui. Foi ali que aprendi o que é catarse. Muitos anos depois, na USP, outros professores pediram-me que explicasse, no papel, o que significa catarse, coisa de arte dramática, Grécia clássica e afins.

É um gol do timão no último segundo, professor. Respondi inconsequente. Era palmeirense o professor. Me chamava de Bruno. Ele riu, mas concordou. É catarse também quando a gente perde com um gol no último minuto. E é respirar fundo uma derrota que ensina a gente a perseverar. É com o amor a um time que a gente entende que não se desiste assim da vida, das coisas, daquilo que é parte de nós. E quem há de dizer que isso não é importante?

O Pacaembu não é só um lugar onde a gente viu uma dúzia e meia de jogos. Porque quem gosta de futebol (ou outro esporte qualquer), sabe que não se trata de um jogo. Buraco é um jogo. Truco, talvez. Futebol, para quem vive futebol, é mais que isso, é um ritual. E se não há lógica nisso, eu só respondo que é uma questão de fé. Cada um tem a sua.

A igreja é importante para o fiel, o Pacaembu é um templo sendo devastado. Um coliseu que assiste à invasão bárbara o por a baixo. Um templo de Delfos que avista ao longe um império Persa, enorme, imbatível, chegar e passar por cima. Mas há de virar algo bonito, vão reformar, vão modernizar.

Lá eu vi Romário entortar o meu zagueiro, vi Fenômeno fazer milagres e vi Neymar perder, imagina só, para o Corinthians. Num jogo que fui com a certeza de que veria uma derrota e vá tentar explicar isso para o pessoal do ‘é só um jogo’, para ver só uma coisa…

 

Eu me chamo Victor Amatucci. E esta talvez seja a única parte de mim que não tenha sido influenciada pelo Pacaembu. O resto, todo o resto do que eu sou como homem, como pai, como filho e como cidadão, tudo de alguma forma é resultado direto ou indireto das coisas que vivi ali.

Ao fim e ao cabo, nada é exemplo suficientemente poderoso para encerrar a discussão. Quem não entende o que é a cultura, quem baseia sua vida na concretude rasa da eficiência e lucro não saberá nunca o que são os aplausos para um ator. Ou uma lágrima para um poeta, uma plateia para um músico. Nada disso se traduz com concretude e tudo isso é tão maior que um prédio qualquer no lugar de tantas lembranças.

Hoje colocaram as cadeiras do Pacaembu à venda. Como se fosse deles para vender. Como se nossa alma pudesse ser aprisionada em um produto e vendida a R$1800,00. Na Tok Stok.

Um pedaço de mim virou um souvenir e eu sequer tenho dinheiro para comprá-lo de volta. Mas também, o que é que eu faria com uma cadeira sozinha? O Pacaembu é um coletivo, estúpido. Agora o coletivo é que é estúpido.

O seu, o meu, o nosso Pacaembu agora é deles. E como tudo que é deles, não significa mais nada, mas custa caro.

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1 Comentário

  1. Paulo Roberto Stockler

    “O que não é nosso num mundo onde tudo nos roubam?“
    Mia Couto
    O Outro Pé da Sereia

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