Houve um tempo em que ter certezas era mais simples. Ninguém tinha muita dúvida que a Terra não é plana, que o tempo é relativo e que se vacinar é importante. Um tempo em que as pessoas discordavam politicamente mas ninguém queria que pobre morresse de fome ou que pessoas fossem mortas assassinadas. Esse tempo, sabemos, não existe mais.
Milhões de pessoas mundo afora têm certeza de que vacinar contra COVID-19 mata e não têm certeza que a própria COVID possa matar. Agora tem um monte de Youtuber por aí dizendo que a Terra não é redonda (ok, redonda é uma simplificação, pode chamar de Geoide se quiser precisão) coisa nenhuma. Tem até uma galera que acha que escola é bobagem, que o legal mesmo é deixar a criançada em casa…
Mas estas dúvidas a gente ainda tem o direito de não ter. Podemos guardar confortavelmente no nosso coraçãozinho que a COVID mata sim e que Copérnico estava certo. Há outras certezas, no entanto, que me deixam mais preocupado. Por exemplo, a questão do nosso endereço.
Falando assim nem parece duvidoso. Mas usa um VPN para ver. VPN significa Virtual Private Network e é basicamente uma ferramenta que esconde seu endereço online e coloca um endereço falso como sendo o seu. Muita gente usa para não deixar rastros na internet e proteger sua privacidade. Outras tantas para ver filmes que não estão disponíveis no streaming do seu país. Você coloca uma máscara dizendo que está nos EUA e pronto, instantaneamente você tem acesso ao catálogo de lá.
Mas isso, dirá a mais sagaz, não muda o meu endereço fixo. Pois é, direi eu, mas deixa ele muito mais flexível, né? E essa flexibilidade também se aplica a empresas. Por exemplo o Telegram. Telegram é aquele ZAP que o povo acha que é mais seguro – talvez o Moro não tenha tanta certeza disso – e que foi desenvolvido por russos. Os russos sabem bem desse trem de se esconder e disfarçar né? Pois é.
O Telegram só possui um endereço oficial, mais ou menos como eu e você que tá lendo (tem alguém aí?). Mas ele fica Dubai, aquele lugar do mundo conhecido pela liberdade de expressão – exceto se você for gay ou mulher – e direitos sendo celebrados abertamente – exceto se você não for da religião deles. E como não tem sede fixa – deixa eu colocar aqui um país fictício para que fiquemos só no campo das ideias – em Bananópolis, a justiça de lá não consegue notificar a empresa. E por conta disso diversos grupos de pedofilia criados no Telegram por pessoas que vivem em Bananópolis seguem abertos até que algo – que não é a justiça – faça o aplicativo mudar de ideia. Basicamente a população de Bananópolis é capaz, através de um aplicativo, de viver em um lugar que não tem leis enquanto vivem em Bananópolis.
Aí a certeza de onde que eu moro fica menos certa, entende? Se eu ligo a minha TV e vejo um filme na Netflix americana, desligo e abro o Telegram para ver mensagens de cidadãos de Patodonópolis protestando contra o governo local (há uma ditadura sanguinolenta em Patodonópolis e a internet por lá é controlada) então eu estive em três endereços do mundo em menos de 3 horas. E tudo isso no meu sofá.
Pero Vaz de Caminha em 1400 e lá vai maresia tinha que anotar tudo que via num papel caríssimo, com uma pena. Pensar que era só ele acessar o Google Earth e dar 3 cliques?! O mundo ficou menor.
E se é complexo no endereço, imagina na privacidade?! Antigamente o auge da invasão de privacidade era alguém abrir uma carta sua que chegasse pelo correio. Hoje a gente usa o email “gratuito” do Google sabendo que os robôs dele irão mesmo ler os assuntos dos nossos e-mails e tá tudo bem. Mas quando o Whatsapp diz que vai usar os dados das conversas para fazer a mesma coisa, nossa um escândalo. É engraçado como a privacidade é um conceito que se move. A gente não quer que um aplicativo tenha acesso à nossa localização mas não se importa em ceder nosso rosto para entrar em prédios modernos. O reconhecimento facial ou digital é um dado muito mais sensível, mas isso aparentemente não incomoda tanto. A gente acha até ‘chique’ que no nosso prédio tenha reconhecimento facial. A gente não pergunta qual empresa e software faz isso e quais os termos desse serviço. Se eles podem vender isso para o governo, a gente só acha legal e se sente mais seguro. Mas quando o governo diz que vai aplicar reconhecimento facial no metrô, daí a gente acha um pouco a mais (e é muito a mais).
Eu já não sei mais o que é privacidade e o quanto ela é importante. Quer dizer, eu sei que ela é, mas em que nível?
E já que falamos de privacidade, que tal esse negócio de Inteligência Artificial? A gente fala assim e parece que o exterminador do futuro está chegando, mas a verdade é que a inteligência artificial ainda é bastante burra para termos humanos. O que não a impede de ser impressionantemente eficiente.
Uma pequena anedota para te distrair e perder o foco nesse texto gigantesco e inútil:
Um programador chega para outro e diz: Você viu que as máquinas agora sabem programar códigos sozinhas? Vamos perder nossos empregos!
O outro olha tranquilo e responde: Para isso nossos clientes teriam que ser bastante eficientes em dizer aquilo que querem.
Eles se olham e respiram aliviados: nosso emprego tá salvo.
A foto que coloco abaixo foi “totalmente produzida pela inteligência artificial”, mas precisa destas aspas para definir.
Como podemos afirmar que ela foi totalmente criada pela inteligência artificial se um de nós (humanos) teve que dar as instruções a respeito daquilo que precisava ser feito? Inteligência não pressupõe criatividade, autonomia? Mas essa ainda é a parte tranquila da discussão. Vejamos a foto, depois continuamos:

O que realmente vai fundir a sua cuca é pensar que cada elemento dessa foto, cada pequeno pixel dela é fruto de um copia e cola incessante. E se é uma colagem de imagens já produzidas, ora bolas, são imagens produzidas por alguém. Podem até ser extra-terrenos, mas máquinas?
E se eu estou utilizando aqui a foto-montagem-colagem-criação estou infringindo os direitos autorais de quantos seres humanos? Se eu quiser dar os créditos, dou a quem? E mais do que isso, se a empresa que programou a inteligência artificial quiser cobrar pela foto, ela pode? E como fará para repassar a parte dos artistas originais? E quem auditaria isso?
Ainda pode ficar mais complicado. Veja esse ensaio do ótimo Fabio Setti:
As fotos em questão são fruto da Inteligência Artificial guiada por instruções do fotógrafo. Ele subiu fotos de seu próprio acervo, colocou instruções específicas do que desejaria para seu ensaio e a IA fez o resto. O resultado, me parece, é brilhante. Fruto de pesquisa e conhecimento técnico do Fábio. E de quantos outos fotógrafos?
A quem se dá o crédito do ensaio?
O mundo, já dizia Bauman, está cada vez mais líquido. Parece que nossa evolução nos levou de volta à Pangea. As fronteiras, assim como minhas certezas, já não são assim tão sólidas.
E vamos ter que dormir com esse barulho.
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