O que aprendi com o fechamento das escolas durante a pandemia

31 jan, 2022 | Infância

Desde o início da pandemia no Brasil, em março de 2020, uma discussão tem tomado meu círculo social e me incomodado bastante. Em momentos de pico de contágio, as escolas e creches devem permanecer abertas ou fechadas?

O fundo da discussão, dizem, é a preocupação sanitária e seus desdobramentos: os profissionais de educação, os pais, a comunidade escolar, as crianças, a ausência de vacinas, etc. E acredito, sim, que muitas pessoas estejam sinceramente preocupadas com tudo isso. Mas me incomoda bastante que ainda hoje, dois anos após o início da pandemia no Brasil e com a volta de um momento crítico de casos e as novas variantes, as notícias nos jornais se limitem a manchetes como “O que os pais precisam saber para a volta às aulas em meio à onda de ômicron”

Isso porque, sempre que vejo estas chamadas, me pergunto: quando foi que vimos uma manchete “O que os atletas precisam saber antes de voltarem ao crossfit?”. Em que momento você leu “O que os cinéfilos precisam saber antes de voltarem aos cinemas?” ou ainda “o que os amantes da gastronomia precisam saber antes de voltarem aos restaurantes?”.

E como vivemos em tempos onde o pensamento binário é corrente majoritária, cabe também a explanação: não, este não é um texto que pretende ignorar os riscos de contágio e mortes por Covid em uma creche ou escola infantil. Ao contrário.

O que me soa absurdo é ver que em qualquer pico da doença, a primeira discussão que se faz é fechar ou não as escolas na pandemia, antes de se discutir o fechamento dos cinemas ou das academias ou bares. Podemos todos beber, lotar casas de show, frequentar restaurantes e baladas. Mas as crianças, ai delas, que crime frequentar a escola!

Não é preciso ser pai/mãe ou educador para entender que o aprendizado de uma criança se dá através de seus pares e da observação do mundo (onde mais se daria?). Não é preciso muito estudo para entender que o mundo não se resume à estrutura familiar mais próxima – e algumas vezes, desestrutura também. 

Ao mesmo tempo, não é nada incomum ouvir crianças sendo chamadas de ‘hospedeiras’, ‘táxi de covid’ e outras denominações. E me parecem ainda mais hipócritas as matérias ou pseudo-preocupações dos novos intelectuais (de todos os matizes), que ignoram o desenvolvimento infanto-juvenil e a importância da convivência em sociedade.

Antes de sanitária, a discussão sobre a volta às aulas me parece pautada por um forte preconceito etário (com certeza deve haver algum nome mais bonito que criançofobia – ou, como está na moda dizer, childfree). Muitos dizem concordar que as escolas e creches deveriam fechar depois do crossfit, por exemplo. Mas quando discutem a pandemia, é o fechamento quase que incondicional de creches e escolas o que mais mobiliza pessoas. Afinal, não parece nada mal manter crianças longe de shoppings, resorts e espaços em comum. Não se trata só da Covid. Crianças fazem birra, tocam em tudo, exigem atenção e mais cuidado aos protocolos. Melhor mantê-las encarceradas.

E em 2020, quando as escolas permaneceram fechadas, alguém se lembrou das infra-estrutura delas? De como uma reforma poderia não apenas melhorar as condições respiratórias (em geral, não só pensando na COVID-19) e de como seus equipamentos poderiam ser modernizados? Mais ar livre, árvores, tanques de areia e terra? Quando é que debateremos isso?

Um estudo recente mostrou o que todo mundo já sabia ou imaginava, crianças mais pobres foram as mais afetadas pelo fechamento das aulas. Na verdade, o estudo foi além e demonstrou que crianças na fase de alfabetização (5 a 9 anos) e crianças mais pobres estão entre as mais afetadas pelo fechamento das escolas. Não é uma grande novidade, estudos já demonstravam que a evasão escolar em crianças menores de 10 anos é a mais difícil de se reverter.

Outro estudo aponta que entre 2019 e 2021, houve queda de 7,3% nas matrículas infantis, ou em números brutos, mais de 650 mil crianças deixaram as escolas, um número que vinha em alta desde 2005. Os dados são do Censo Escolar 2021. 

A preocupação com as crianças que dependem das escolas e creches para se alimentarem foi completamente esquecida. Um estudo de 2019, pré-pandemia portanto, produzido pela Fundação Abrinq demonstrou que 47,8% das crianças brasileiras vivem na pobreza. E essas crianças passam fome durante as férias. O que fazer com elas?

De onde vem, então, essa súbita preocupação social com crianças e bebês, que ignora a vida emocional e o cotidiano real de quem frequenta creches e escolas, como se a saúde mental fosse menos relevante que a saúde física? Sobretudo hoje, quando trabalhadores e trabalhadoras estão felizmente vacinados (salvo os negacionistas e pouquíssimos casos onde a vacina é contraindicada) e boa parte das crianças já pode se vacinar (pelo menos as que têm mais de cinco), ainda que isto tenha se dado após duras lutas em favor da ciência.

A verdade é que entre tantas coisas, a pandemia serviu para descortinar mais um preconceito. A ideia de que as crianças devem permanecer afastadas da sociedade, seja porque atrapalham o jantar no restaurante ou porque fazem barulho indevido no resort onde adultos – vacinados e não vacinados – passam suas férias e trocam opiniões e variantes entre si. E isso reverbera, como sempre, no discurso difuso do ‘vamos proteger os trabalhadores, deixando as crianças em casa’. Ao mesmo em que o patrão não entende que a criança em casa implica em menos horas trabalhadas. Qual a saída? Ninguém pretende (assim espero!) sumir com as crianças,certo?

Só as crianças é que são vetores? As férias na praia, os passeios aos bares e botecos, os sambas nas esquinas, as baladas e cinemas, as praças de alimentação e restaurantes, os ônibus e metrôs lotados, os escritórios de financeiras, as salas com ar condicionado cheias de pessoas vendendo planos de celular, nada disso incomoda?

Em 2020 eu fui um dos ingênuos que acreditaram que a sociedade poderia aprender alguma coisa com tantas mortes. Que 630 mil mortos ensinariam a importância de se colocar no lugar do outro, de pensar nas pessoas que possuem vidas diferentes das nossas e olhar com mais afeto para o futuro. Em 2022 eu abri mão da ingenuidade e entendi que é isso mesmo. Cada um por si e as crianças penalizadas por quase todos.

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